Uma aula no maternal da Rosária
9:40 da manhã de quarta
feira. Dia frio em maio, céu azul e limpo. Só me faltava um cheiro
de roça queimada para que eu pudesse me transportar 35 anos no
tempo. Sou muito marcado pelos sons, sabores e principalmente pelo
olfato. Mas o clima está perfeito para mais uma aventura na minha
vida. Vou pela primeira vez me ter com a Rosária e sua turminha do
maternal, crianças de 2 e 3 anos.
Encontrar-me com essas
crianças é um atrevimento grande. As crianças pequenas estão
experimentando tudo aos poucos, estão formando suas impressões de
mundo, seus conhecimentos, suas sensações. Tudo toca fundo e tudo
move. Suas reações são de crença e elas se apóiam totalmente em
quem está ali como referência. A Rosária é esse ponto central,
esse farol visto o tempo todo. Não é de se surpreender que ao me
apresentar ela tenha dito que eu sou um “amigo”, me colocando
dentro do seu espaço afetivo e de confiança. As crianças entendem
e me olham muito caladas, mudas... querem me ouvir, me saber, me
captar. Quem é esse homem?
Eu
sou a música, e não pode haver desvios. Devo ser claro e preciso me
fazer entender logo. A música não é minha propriedade e por sorte
as crianças dali já têm intensas experiências com ela. Sei disso.
Desde o berçário as educadoras cantam. Cantam, a Beré canta, não
é que deixam um cd tocando alto enquanto o dia transcorre. Cantam, e
o canto tem uma finalidade, tem um destino, tem um foco: cantam para
elas, para cada uma delas, cantam para o encontro, para afirmar uma
postura, uma compreensão bem definida da vida. Cantam para dizer que
a vida vale a pena, para dizer que cada uma dessas crianças tem um
valor e são únicas, são um presente, um dom. Cantam porque muitas
mães já não cantam! Aqui onde trabalho é uma obra educativa e
assistencial, numa região pobre da periferia de Belo Horizonte.
Poderia ser por isso, pela vertente da pobreza e da necessidade essa
forma de compreender os valores da música ou da minha atuação. Mas
que engano! O fenômeno musical é isso! Tem esse poder de afirmar
claramente um modo de perceber e atuar no mundo. Por outro lado, a
pessoa é isso, um complexo de necessidades e vulnerabilidades. O
status, a posição social não salva a pessoa das suas necessidades.
Somos seres dependentes do encontro e da positividade: do
significado. Mas uma postura como essa dos educadores, que cantam,
não se contrata, se educa.
Música na infância é
corporalidade, movimento, luz, contraste, afetividade, é música! E
eu vou ao encontro dessas crianças... cantar um bem e receber a
grande esperança, a promessa que elas são e trazem para o mundo.
Cantamos em roda “atirei
o pau no gato”. Melodia alegre, em modo maior, muito familiar para
nós ocidentais, com movimentos melódicos ascendentes e descendentes
em graus conjuntos de fácil entoação para as crianças, com poucos
saltos e bastante direcionalidade. Tudo caminha para o clímax final
em que as crianças atingem a nota mais alta, a tônica superior, e
se jogam no chão num pulo às vezes até perigoso. Para mim foi uma
surpresa: as crianças se jogaram no chão e permaneceram ali
deitadas, como se estivessem descansando da jornada musical que
aquela pequena peça as proporcionou. Foi muito engraçado. Repetimos
tudo e nada se perdeu.
Ensinei para elas o “pé
de alface”. Cantiga em que “os coelhinhos” afirmam o seu grande
prazer em comer verduras e legumes e a delícia de poderem fazer
“requebradinhas”. Nessa música a criança que está no meio da
roda é o coelhinho e está na expectativa de convidar um colega pra
juntos rebolarem. Música, educação alimentar, motricidade,
disciplina, afetividade, alegria ao som do pandeiro.
Plantei um pé de alface
A “Clara” tirou um galho (2x)
Rebola xuxu rebola
Rebola senão eu caio (2x)
Melodia muito ritmada e
com vários saltos melódicos, mas muito atraente. Os saltos,
difíceis no começo, logo são incorporados e valorizam muito a
pulsação e o jogo. A vontade de dançar aumenta pelo uso do
pandeiro num “toque” muito familiar para quem gosta de capoeira
ou samba.
Propus fazermos “o
vento do fantasma”, “o uivo do lobisomem”, gesto melódico em
glissando num sobe e desce arrepiante. As crianças gostaram muito e
se lembraram do lobo mau. Além de vocalizarmos, lançamos os braços
pra cima e pra baixo fortalecendo a compreensão do movimento
melódico. O glissando é gostoso de fazer e quando bem feito
fortalece as cordas vocais e ajuda a ampliar a extensão vocal. É
bem diferente dos gritos que as crianças fazem no recreio. É tudo
controlado, educado para não “quebrar o som”, fato que deixa a
voz muito estridente e irritante. Muitas crianças gritam muito ao
falar, exatamente porque não tem uma boa referência vocal. Fizemos
isso e depois também imitamos “o vento do Saci Pererê”, um
sopro mais oscilante em formato de redemoinho. Acho que isso eu não
sou capaz de descrever, mas tentem imaginar, ou então criem o seu
próprio. Cantei pra elas o “vento caxinguelê”:
Vem vento caxinguelê
Cachorro do mato quer me morder
É uma cantiga “sem
compromisso”, não demanda nada, não propõe nenhum movimento ou
atitude. Existe. Não tem serventia a não ser ela mesma, o prazer de
cantar. São duas notas de um acorde acéfalo: a terça e a quinta de
um acorde maior. É portanto um intervalinho de terça menor que
saltita pra cima e pra baixo, leve, sem direcionamento climático.
Com um movimento de mãos mostrei pra elas que as notas pulavam pra
acima e pra baixo, e brincamos um pouco com isso, cantando.
Levantei-me em seguida, e peguei na minha mochila um tubinho de fazer
bolinhas de sabão. Brincamos muito de soprar as bolinhas sem
batê-las com as mãos ou sair do lugar. As bolinhas ficaram
flutuando por muito tempo e pudemos ver muitas delas explodindo. Um
gran finale.
Marco Aur
Educador de Cantiga de Roda
(uma parceria das Obras com o BDMG Cultural)
Foto: Kika Antunes