quinta-feira, 31 de maio de 2012

Uma aula no maternal da Rosária por Marco Aur

Vejam que maravilha de relatorio do nosso educador musical MARCO AUR...




Uma aula no maternal da Rosária

9:40 da manhã de quarta feira. Dia frio em maio, céu azul e limpo. Só me faltava um cheiro de roça queimada para que eu pudesse me transportar 35 anos no tempo. Sou muito marcado pelos sons, sabores e principalmente pelo olfato. Mas o clima está perfeito para mais uma aventura na minha vida. Vou pela primeira vez me ter com a Rosária e sua turminha do maternal, crianças de 2 e 3 anos.
Encontrar-me com essas crianças é um atrevimento grande. As crianças pequenas estão experimentando tudo aos poucos, estão formando suas impressões de mundo, seus conhecimentos, suas sensações. Tudo toca fundo e tudo move. Suas reações são de crença e elas se apóiam totalmente em quem está ali como referência. A Rosária é esse ponto central, esse farol visto o tempo todo. Não é de se surpreender que ao me apresentar ela tenha dito que eu sou um “amigo”, me colocando dentro do seu espaço afetivo e de confiança. As crianças entendem e me olham muito caladas, mudas... querem me ouvir, me saber, me captar. Quem é esse homem?

Eu sou a música, e não pode haver desvios. Devo ser claro e preciso me fazer entender logo. A música não é minha propriedade e por sorte as crianças dali já têm intensas experiências com ela. Sei disso. Desde o berçário as educadoras cantam. Cantam, a Beré canta, não é que deixam um cd tocando alto enquanto o dia transcorre. Cantam, e o canto tem uma finalidade, tem um destino, tem um foco: cantam para elas, para cada uma delas, cantam para o encontro, para afirmar uma postura, uma compreensão bem definida da vida. Cantam para dizer que a vida vale a pena, para dizer que cada uma dessas crianças tem um valor e são únicas, são um presente, um dom. Cantam porque muitas mães já não cantam! Aqui onde trabalho é uma obra educativa e assistencial, numa região pobre da periferia de Belo Horizonte. Poderia ser por isso, pela vertente da pobreza e da necessidade essa forma de compreender os valores da música ou da minha atuação. Mas que engano! O fenômeno musical é isso! Tem esse poder de afirmar claramente um modo de perceber e atuar no mundo. Por outro lado, a pessoa é isso, um complexo de necessidades e vulnerabilidades. O status, a posição social não salva a pessoa das suas necessidades. Somos seres dependentes do encontro e da positividade: do significado. Mas uma postura como essa dos educadores, que cantam, não se contrata, se educa.

Música na infância é corporalidade, movimento, luz, contraste, afetividade, é música! E eu vou ao encontro dessas crianças... cantar um bem e receber a grande esperança, a promessa que elas são e trazem para o mundo.

Cantamos em roda “atirei o pau no gato”. Melodia alegre, em modo maior, muito familiar para nós ocidentais, com movimentos melódicos ascendentes e descendentes em graus conjuntos de fácil entoação para as crianças, com poucos saltos e bastante direcionalidade. Tudo caminha para o clímax final em que as crianças atingem a nota mais alta, a tônica superior, e se jogam no chão num pulo às vezes até perigoso. Para mim foi uma surpresa: as crianças se jogaram no chão e permaneceram ali deitadas, como se estivessem descansando da jornada musical que aquela pequena peça as proporcionou. Foi muito engraçado. Repetimos tudo e nada se perdeu.

Ensinei para elas o “pé de alface”. Cantiga em que “os coelhinhos” afirmam o seu grande prazer em comer verduras e legumes e a delícia de poderem fazer “requebradinhas”. Nessa música a criança que está no meio da roda é o coelhinho e está na expectativa de convidar um colega pra juntos rebolarem. Música, educação alimentar, motricidade, disciplina, afetividade, alegria ao som do pandeiro.

Plantei um pé de alface
A “Clara” tirou um galho (2x)
Rebola xuxu rebola
Rebola senão eu caio (2x)



Melodia muito ritmada e com vários saltos melódicos, mas muito atraente. Os saltos, difíceis no começo, logo são incorporados e valorizam muito a pulsação e o jogo. A vontade de dançar aumenta pelo uso do pandeiro num “toque” muito familiar para quem gosta de capoeira ou samba.

Propus fazermos “o vento do fantasma”, “o uivo do lobisomem”, gesto melódico em glissando num sobe e desce arrepiante. As crianças gostaram muito e se lembraram do lobo mau. Além de vocalizarmos, lançamos os braços pra cima e pra baixo fortalecendo a compreensão do movimento melódico. O glissando é gostoso de fazer e quando bem feito fortalece as cordas vocais e ajuda a ampliar a extensão vocal. É bem diferente dos gritos que as crianças fazem no recreio. É tudo controlado, educado para não “quebrar o som”, fato que deixa a voz muito estridente e irritante. Muitas crianças gritam muito ao falar, exatamente porque não tem uma boa referência vocal. Fizemos isso e depois também imitamos “o vento do Saci Pererê”, um sopro mais oscilante em formato de redemoinho. Acho que isso eu não sou capaz de descrever, mas tentem imaginar, ou então criem o seu próprio. Cantei pra elas o “vento caxinguelê”:

Vem vento caxinguelê
Cachorro do mato quer me morder

É uma cantiga “sem compromisso”, não demanda nada, não propõe nenhum movimento ou atitude. Existe. Não tem serventia a não ser ela mesma, o prazer de cantar. São duas notas de um acorde acéfalo: a terça e a quinta de um acorde maior. É portanto um intervalinho de terça menor que saltita pra cima e pra baixo, leve, sem direcionamento climático. Com um movimento de mãos mostrei pra elas que as notas pulavam pra acima e pra baixo, e brincamos um pouco com isso, cantando. Levantei-me em seguida, e peguei na minha mochila um tubinho de fazer bolinhas de sabão. Brincamos muito de soprar as bolinhas sem batê-las com as mãos ou sair do lugar. As bolinhas ficaram flutuando por muito tempo e pudemos ver muitas delas explodindo. Um gran finale.

Marco Aur
Educador de Cantiga de Roda

(uma parceria das Obras com o BDMG Cultural)


Foto: Kika Antunes

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